O som da queda d'água
rebentando nas pedras era ensurdecedor. Nem mesmo o matraquear das barulhentas
maritacas era capaz de sobrepujar o rugido do rio em queda.
A rocha nua precipitava-se para
o abismo, solitária e estoica, moldada pelas mãos do vento a figurar eterna
sobre o Olho de Jaci.
Esta observava de seu plano
celeste, irradiando sua luz fria e prateada. Curiosa e indiferente aos perigos
que aquela cerimônia encerrava. Ansiosa pelo resultado da provação a que suas
escolhidas se dispunham a enfrentar.
As cinco meninas tensas,
aguardavam a sacerdotisa terminar seu ritual em homenagem a grande deusa da
noite, temerosas do que viria a seguir. Seus corações batiam descompassados e
suas mentes trabalhavam em dolorida incerteza. Seus corpos estavam gélidos e
úmidos pela aproximação cada vez mais certa do perigo.
- Oh! Jaci, minha mãe sagrada.
Minha única guia pelas trevas da incerteza. Hoje estas cinco jovens corajosas
curvam-se diante de Vossa vontade. Todas se provaram dignas aos olhos dos
mortais. Mas somos crianças ingênuas e nada sabemos. Interceda, Senhora da
Noite, e nos ajude a escolher a mais valente entre elas.
A Sacerdotisa cuja face estava
marcada pelas lágrimas cerimoniais, ergueu seu corpo esquálido e aproximou-se
das cinco meninas intimidadas.
- Jaci disse: Aquelas que
desejam encontrar a verdade devem vir a mim. Abdicar de seus temores e confiar
e minha misericórdia, pois só assim poderão tornar-se senhora de si. E o símbolo
deste feito glorioso é esta Muiraquitã. - Disse estendendo o amuleto de jade em
forma de sapo diante delas. A pedra reluziu magicamente a luz prateada da deusa.
- Aquela que trouxer a tona o símbolo se sua coragem será a escolhida.
Afastou-se delas com passos
decididos, estendeu o amuleto na direção da Deusa, para que esta o abençoasse e
o atirou cachoeira abaixo.
- Que Jaci as guie e proteja em
sua busca. Que afaste os anhangás que cruzarem seus caminhos e lhes dê força
para resistir às provações que hão de surgirem.
Afastou-se da borda e sentou-se
sobre as pernas, levando as mãos ao rosto para chorar copiosamente o destino
daquelas cinco.
Três das meninas adiantaram-se,
um passo vacilante em direção ao abismo. Ergueram seus rostos para a Deusa,
pediram proteção, inspiraram fundo e desataram a correr em direção à borda. Uma
delas saltou com confiança para bem longe. Outra o fez timidamente. E a
terceira desistiu no instante final, caindo de joelhos e levando as mãos ao
rosto, envergonhada.
As outras duas permaneceram estancadas
onde estavam. Olhos arregalados, pernas trêmulas e corações palpitantes. Uma
delas não conseguiu mais controlar seu pavor e fugiu na direção das matas. A
outra permaneceu sacudindo-se como um arbusto agitado pelo vento. Buscando
apoio a sua covardia nos sisudos rostos das Iniciadas. Encontrou apenas olhares
de desprezo e indiferença.
Tomada pela certeza do que não
gostaria de levar para o resto da vida, foi invadida por uma coragem que não
acreditava possuir. Respirou profundamente e correu para o vazio. A garota que
desistiu no último instante ainda estava à beira do abismo e a contemplou com
admirada surpresa. Ela pode ver sua boca escancarada e os olhos arregalados,
quando curvou o corpo para mergulhar em direção ao lago. Tão rápido quanto um instante,
o mundo superior desapareceu e tudo o que lhe restou foi a longa e ansiosa
queda. Sentiu-se livre como um pássaro, mas logo se lembrou de que não tinha
asas. Gotículas de água gelada aderiam-se a sua pele nua enquanto ela
despencava, nublavam sua visão e amplificavam o arrepio na espinha. Seu coração
disparou ao perceber que o antes pequeno lago prateado agigantara-se diante
dela como se prestes a devorá-la.
Fechou os olhos, prendeu a
respiração e enrijeceu os músculos.
O impacto foi tão forte quanto
cair de uma árvore diretamente no chão de pedra. Seu corpo inteiro parecia
arder e gritar em dor lancinante entorpecendo lhe os sentidos de tal maneira
que não conseguiu encontrar forças para uma reação imediata. Sentiu-se
flutuando, serena, ouvindo ao longe o rufar de tambores de guerra.
Pouco a pouco seus sentidos
começaram a retornar e a claridade prateada acima do véu de água borbulhante a
fez despertar de seu torpor. Esperneou até a superfície e quando venceu a
barreira d’água sugou o ar com toda força de seus pulmões. Ele entrou como uma
chama, queimando-a por dentro e forçando-a a tossir toda a água que ingerira na
queda. Lutou para permanecer boiando, buscou referências e então a viu.
Uma das meninas repousava de
bruços, imóvel, numa das margens do lago. Seu braço direito pendia flácido de
maneira pouco natural. A água em torno dela estava turva. Ainda mais assustada
a jovem sobrevivente afastou-se, procurou ao redor qualquer pessoa para quem
pudesse clamar por ajuda, mas encontrou apenas solidão. Não havia volta. Jaci a
protegera durante o salto, agora era hora de retribuir a graça.
Inspirou profundamente, tomou
impulso e mergulhou nas águas prateadas. Aos poucos foi abandonando o mundo de
cores, sons e cheiros, enveredando pela imensidão densa e sombria. Esbarrando
em algas e pequenos peixes, tentando encontrar a joia sagrada. Seu corpo
clamava por descanso e por ar, mas ela não poderia se dar aquele luxo. Não
conseguiria encontrar forças para mergulhar novamente se retornasse a
superfície.
Quando suas certezas começavam
a desvanecer e a ansiedade a dominar seu coração, vislumbrou um brilho prateado
nas profundezas. Foi ligeiro, quase imperceptível, mas suficiente para lhe dar
motivação. Utilizou-se das últimas reservas de energia para alcançá-lo. E então
uma nova onda de pavor tomou conta dela.
Não fora o reflexo da muiraquitã
que ela avistou, mas o brilho prateado da Lua nos olhos sem vida de sua outra
companheira que, presa nos profundezas do lago, segurava a cobiçada joia com
firmeza, seus longos cabelos negros e lisos pareciam tentáculos sombrios,
desejosos por agarrar-se as criaturas vivas. Seu semblante eternizado em pavor
sufocado.
A jovem sobrevivente tentou
arrancar a jade das mãos da menina morta, mas os dedos estavam duros e gélidos como
rocha. Forçou-os com ambas as mãos até que finalmente conseguiu libertar o
amuleto. Rapidamente forçou-se a nadar para a superfície, sentiu a mão em garra
do cadáver tocar-lhe o tornozelo, como se desejando impedi-la de escapar
daquelas trevas abissais.
Seus músculos estavam falhando
e ainda faltava muito até a superfície. Jaci tremulava na água agitada, quase
um borrão prateado para além do infinito. “Só mais uma braçada...” – Pensou exausta.
“Só mais uma braçada...”
E assim prosseguiu, para além
do limite de suas forças, braçada por braçada, impulso por impulso, até que
finalmente os sons retornaram com força, o útero sombrio do lago foi
ultrapassado e o ar incinerou-a por dentro, forçando-a a gritar exasperada pela
vida que teimava em perseverar.
Instintivamente ergueu o braço
com a joia esverdeada o máximo que conseguiu. Sentiu as pernas fraquejarem, já
não tinha mais forças. O Lago a estava chamando novamente e desta vez ela não
teria forças para resistir.
Algo a apanhou pela cintura e a
arrastou para a margem, fazendo seu franzino corpo deslizar por sobre a água
rápido como uma lontra. Ela agarrou-se as raízes e engatinhou para fora do
Espelho, gemendo alto a cada movimento. Quando finalmente ergueu o rosto,
vislumbrou a sacerdotisa e as iniciadas que a contemplavam com sorrisos
satisfeitos.
- Jaci está satisfeita. –
Clamou a líder. – Erga-se Iraí.
Ela obedeceu, não prontamente,
pois mal se aguentava de joelhos. Com as pernas bambas se manteve o tempo
suficiente para ser consagrada. O colar com sua muiraquitã foi amarrado ao
redor de seu fino e frágil pescoço e a sacerdotisa sorriu. – Iraí mergulho nas
trevas, morreu e renasceu com a benção de Nossa Mãe Jaci. Iraí é agora o
orgulho das Cunuipuiaras!
- Iraí é agora uma Icamiaba!